A China fez o que pode para escapar da recessão global e agora encara as chances de um superaquecimento de sua economia. Com números superlativos em qualquer segmento econômico, não é uma tarefa trivial saber se o ritmo atual poderá ser sustentado por muito tempo ou se uma razoável freada de arrumação está a caminho. Boa parte da recuperação global depende hoje da incógnita do crescimento chinês, que arrasta consigo o forte desempenho das economias asiáticas e joga para cima as exportações do Brasil. E, tanto quanto a intensidade, o mundo olha a qualidade da performance pós-crise da China. O governo, sob críticas pesadas para valorizar o câmbio e dirigir o dinamismo da economia para o mercado doméstico, reduzindo os gigantescos saldos comerciais, diz que a economia já mudou na direção do consumo interno e ninguém viu. É uma posição tão questionável quanto a confiabilidade das estatísticas do país.
O maior pacote de estímulo do mundo, de US$ 586 bilhões - o dos EUA atingiu US$ 780 bilhões, mas a maior parte foi para sustentar um sistema financeiros em escombros - não deixou o Produto Interno Bruto mergulhar abaixo dos 8% em 2009. Dissecar como ele agiu dá uma ideia de como funciona a economia chinesa. A contribuição dos investimentos para o crescimento do PIB no ano passado foi de espantosos 94,6%. Os estímulos contrabalançaram o peso negativo de 47,7% sobre o PIB do recuo das exportações. Já no primeiro trimestre de 2010, houve uma inversão significativa: o consumo contribuiu com 57,9% do avanço de 11,9% do PIB no período. Um trimestre pode não indicar uma tendência, mas a fatia do consumo raramente atingiu nos últimos anos tal magnitude e mal chega a 40%.
Um dos sintomas do aquecimento da economia chinesa é a temperatura do mercado imobiliário, que está sendo combatida por medidas de contenção. Os aumentos dos preços dos imóveis nas 70 maiores cidades (11,7% em bases anualizadas em março), porém, não estão distantes da evolução do avanço da renda per capita disponível, que foi de 9,8% nos 12 meses terminados no primeiro trimestre. E, se considerada a evolução dos demais setores, é possível dizer que as bolhas estão por toda a parte. Nos três primeiros meses do ano a indústria cresceu 19,6% e o comércio, 17,9%. A renda dos assalariados urbanos subiu 9,7% e a dos assalariados rurais, 16,3%.
O diagnóstico de aquecimento insustentável seria inequívoco se os investimentos não acompanhassem a expansão da demanda. Não é o caso, por enquanto. Os investimentos fixos no período aumentaram 25,6% e os da construção imobiliária deram um salto de 35,1%. O termômetro inflacionário não acusa mudanças. A inflação ao consumidor, ao contrário, recuou em março para 2,4%, ante 2,6% em fevereiro. Os preços no atacado atingiram 5,9% em março, em relação a março de 2009 e refletem a própria fome chinesa por matérias-primas.
Há peculiaridades chinesas. Dados do Banco Central confirmam a tese de que os imóveis são uma das poucas opções de investimento dos chineses. Pelo menos 23% dos recentes compradores de casas e apartamentos o fizeram com essa finalidade em março. Pessoas que já tinham um imóvel somam outros 14,2%. Isto é, um aperto nas condições de setoriais de crédito e de pagamento dos imóveis pode esfriar um pouco a demanda sem derrubar a economia. É por esse motivo que o governo chinês mexeu mais nos depósitos compulsórios, por exemplo, do que na taxa de juros até agora. A oferta de crédito dobrou em 2009 e será apertada um pouco em 2010, mas deve ficar 50% acima da registrada em 2008.
Sem inflação à vista, o BC não empurrará os juros muito para cima. Por outro lado, se há um aquecimento insustentável na economia, o diagnóstico de que o país precisa valorizar a moeda pode torná-lo o problema mais agudo, sob certos aspectos. A valorização elevará ainda mais os salários e o consumo doméstico - este é um dos motivos reais da relutância do governo em fazê-lo. E seja o que for que os dirigentes chineses estejam pensando para arrefecer o ritmo da economia, é certo que não tomarão medidas drásticas, e sim graduais, em várias frentes.
Como o capital é o fator abundante, a China, mesmo crescendo alucinadamente, cria relativamente poucos empregos por ano, algo em torno de 1%, de acordo com cálculos da revista britânica "The Economist". A participação da mão de obra no produto é menor do que deveria ser em um país ainda atrasado, com renda per capita urbana de US$ 2.500. Este é mais um paradoxo chinês. Os líderes da antiga União Soviética tinham de escolher entre produzir canhões ou manteiga, e os soviéticos foram bons fabricantes de bens de capital, que exportavam, e péssimos em roupas e alimentos, que faltavam. Os burocratas chineses seguiram outro caminho, produzir tudo com salários miseráveis. Grande parte da altíssima taxa de poupança chinesa é decorrente dos lucros das empresas. Os chineses se saíram pior que os povos do Leste Europeu sob outras ditaduras stalinistas - sequer têm direito a uma aposentadoria ou serviços médicos gratuitos. Para usar uma expressão fora de moda, a burocracia chinesa extrai hoje o máximo de mais-valia dos trabalhadores, o que só é possível em um regime que aboliu a liberdade.
quinta-feira, 22 de abril de 2010
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